Nossa avó nos ensinou a fazer queijo, requeijão, manteiga, lingüiça, presunto, tortillas, macarrão, polenta, geléias, doces, bolos, biscoitos, pães; a preparar carnes, frangos, peixes… De origem espanhola, sua cultura era vasta e mesmo senhora de muitas propriedades, suas mãos viviam machucadas pelo esforço de fazer sabão e de cozinhar regularmente para os filhos e netos. Com ela descobrimos boa parte do mundo, aventura que mantivemos mesmo quando, numa idade mais avançada, ela teimasse em se manter recolhida nos fundos da casa.. Hoje percebemos o seu legado e identificamos em nossa ânsia por reconstituir os sabores que nos ofereceu, uma busca maior pelos seus imensos saberes. De fato, foram tantos os valores que ela nos passou que, agora, ao tentarmos reconstituir a textura de seu requeijão, nós nos percebemos em busca de uma experiência de acolhimento… afinal, o sabor crespinho deste antigo requeijão talvez possa ser compartilhado e por esta via, quem sabe, ele nos permita sentir que somos dignos de seu legado.
É tempo de homenagear nossos antepassados; de perceber que somos guardiões de seus sabores; que somos herdeiros de seus saberes e que desejamos lega-los às pessoas. Por vezes, isso pode se dar no compartilhamento de um sabor, na reconstituição de uma receita, na recomposição de um processo de trabalho, mas precisamos ter claro, para nós mesmos, de que legado estamos falando.
A formação e transformação do território paulista foi tão rápida e intensa nos últimos séculos que nós enfrentamos hoje dificuldades profundas de nos percebermos dentro dele. E quando se trata de descendentes de imigrantes, a situação é ainda mais grave.
Deslocados aos milhares para o interior de uma vastíssima extensão de terras e isolados no interior de fazendas dos “sertões paulistas”, povos de todo o mundo – com suas tradições, costumes e hábitos singulares – se veriam absorvidos numa rotina tão dura nas fazendas de café, e tão restrita em suas possibilidades de sociabilidade, que os seus costumes e tradições tenderiam a se dispersar, se homogeneizar ou ainda se recompôr no interior de uma outra cultura, num esforço contínuo de substituições e adaptações.
O regime de “colonato”, base através da qual os imigrantes se fizeram incorporados às fazendas de café, fundamentava-se no trabalho familiar, teia de relações que aqui se definia como uma “unidade de produção” constituída por “pessoas de trabalho” com idade variável entre doze e sessenta 60 anos. Identificados como “meia-enxada” e “enxada”, as famílias (com variação média entre cinco e sete pessoas) contavam com um “chefe” (em geral, o pai) na organização e controle das atividades que recebia em troca um valor fixo pelo trato dos cafeeiros (em unidades de mil pés), um valor variável pela colheita e alguma remuneração (ou não, na forma de diárias) pelos serviços prestados ao fazendeiro. Com direito à moradia gratuita e ao usufruto de benfeitorias, cada “unidade de produção” (colono) também podia/devia plantar milho, feijão e arroz em terrenos específicos (indicados pelo fazendeiro), manter uma pequena horta, criar animais de pequeno porte (aves, suínos) e utilizar de alguma pastagem para poucas vacas e cavalos (BEOZZO BASSANEZI, 1986).
Entre os italianos, imigração que acançou a cifra de 1,2 milhão de pessoas entre as décadas de 1870 e 1945, as famílias procedentes de diversas regiões trouxeram consigo costumes e tradições alimentares que, por força das condições de vida e trabalho, ou ainda, das características do novo país, exigiram mudanças e interações que acabaram por aproximar as culinárias italiana e paulista. Neste sentido, podemos pensar o caso do fubá: gênero alimentício disponível nas terras paulistas – ao mesmo tempo em que largamente utilizado pelas populações agrícolas do norte e centro da Itália –, o fubá logo se fez incorporado ao cotidiano alimentar dos imigrantes através da “polenta” e da “broa” (em particular, entre as famílias sulistas que não tinham o hábito da polenta). A cebola e o alho (condimentos básicos na Itália) se mantiveram presentes, enquanto o feijão (ausente na culinária italiana) se fez incorporar em razão da fartura e dos preços baixos. O arroz (de forte presença em várias regiões da Itália) também teria uso recorrente, prestando-se a substituir quando necessário a farinha de trigo, a cevada, o centeio, além de se somar à dieta cotidiana, os produtos da horta (almeirão, couve, abobrinhas, pimenta, cebolinha verde, entre outros, cultivados pela família), os ovos, queijos e frangos. O vinho, de tempos imemoriais no velho mundo, compunha um outro campo de significações e sua presença associava-se às tradições, cabendo-lhe conferir identidade às famílias italianas que, sempre que possível, o trazia à mesa. Outros gêneros, ainda, como as lingüiças e o toucinho (tão prestigiados na Itália, apesar de ausentes na dieta dos camponeses) ocupariam um lugar especial na rotina dos trabalhadores, mas seu consumo dependia de outros processos.
A matança de animais de médio ou grande porte exigia uma organização capaz de garantir o consumo imediato das carnes, o que se dava com a partilha com familiares ou vizinhança; com o consumo coletivo em festas do calendário comunitário (natal, páscoa, carnaval, padroeiros, etc.); com o consumo em caráter particular (casamentos, batizados, aniversários, etc.), ou ainda, com a comercialização em feiras públicas e açougues. No impedimento do consumo imediato, outros procedimentos culturalmente balizados entravam em cena: o salgamento, a defumação, a secagem e o cozimento, processos que, a depender das tradições regionais, originavam presuntos, morcelas, salames, salsichas e demais alimentos criados de carnes em conserva.
No interior das cidades, por sua vez, as condições de vida e de trabalho seriam diferentes das encontradas no regime de colonato, alargando-se as perspectivas e possibilidades de conseguir um emprego nas fábricas (em sua grande maioria, de pequeno porte), de desempenhar um ofício (como alfaiate, marceneiro, serralheiro… trazidos das regiões de origem), de montar algum “negócio” e praticar o comércio (açougues, mercearias, padarias, pousadas e hotéis etc..). De forma concomitante, os imigrantes experimentaram nas áreas urbanas outras condições de adaptação na medida em que mercearias e vendas disponibilizavam produtos importados (vinhos, queijos, embutidos) e garantiam o consumo de farinha de trigo, possibilitando a produção e comercialização de gêneros alimentícios e fazendo multiplicar no começo do século XX as padarias (o pão de trigo surgiria como uma contribuição italiana à dieta brasileira), os pastifícios (fabricação de massas frescas), além de ganhar lugar as fábricas de vinhos, o comércio de novas frutas e verduras (almeirão, rúcula, chicória, brócolis, mostarda, catalunia, alcachofra…. cultivadas em grandes hortas no interior de quintais e terrenos disponíveis das cidades)… “sabores italianos” que por muito tempo permaneceram desconhecidos da maioria dos imigrantes (procedentes das mais diversas regiões) fixados nas fazendas do interior paulista.
Na trajetória da família Soares Baffi, espanhóis da região noroeste e italianos do sul, a vida se desenvolveu entre as áreas urbana e rural, e desde as primeiras décadas do século XX, ambas famílias adquiriram propriedades rurais e conseguiram construir perspectivas positivas de desenvolvimento, registrando já na segunda geração a formação de seus filhos em escolas superiores. Na esfera gastronômica, a família Soares legou aos seus descendentes uma vasta gama de receitas manuscritas, além da oportunidade que ofereceu de ensinar pessoalmente uma parte significativa de suas tradições. Os conhecimentos e costumes da família Baffi se fizeram transmitidos pelo ramo masculino, abarcando de maneira particular os saberes pecuaristas e agrícolas.