As notícias mais recuadas que temos da gastronomia paulista se relacionam à presença de roças de milho, mandioca, feijão, arroz, algodão, trigo, artigos de horta, frutas e cachaça, à prática de caça e pesca, além da criação de animais de pequeno porte; saberes e fazeres que no curso dos séculos permitiram às populações penetrar, se fixar e circular pelos sertões que viriam a compôr as porções sudeste e centro-oeste do território brasileiro. O açúcar e o café viriam depois…. inicialmente, as lavoras de cana, que ganharam forma nas últimas décadas do século XVIII nas imediações de Itú, Salto, Porto Feliz, Piracicaba (Constituição) e Campinas (Vila de São Carlos), e já no século XIX e XX, as lavouras de café; gênero agrícola que acabaria por embaralhar, transformar e recompôr as marcas seculares dos sertões paulistas.
Às tradições alimentares fundadas no milho (consumido verde e cozido nas formas de pamonha, curau, creme, pudim, mingau, canjica, farinha, pipoca, fubá grosso, fubá mimoso); na mandioca (cozida, farinha, canjica); no feijão; no arroz (em suas variações com feijão, frango ou galinha, suã ou porco, com leite doce ou salgado); no trigo; nos produtos da horta (abóbora, etc..); na banha, toucinho e carne de porco, nas lingüiças e carne seca; na carne de caça, peixes e farinha de içá (formiga tanajura ou saúva vermelha seca e torrada com farinha de mandioca); nas frutas (jabuticabas, cambuci, araçá, pitanga, marmelos, uva, figo) e no pinhão – alimentos que, no curso do tempo acabariam por conferir identidade a uma vasta porção territorial cuja forma de viver e de se relacionar com a natureza se tornou conhecida como “caipira”…. viriam se juntar novas tradições fundadas na presença de propriedades monocultistas de cana de açúcar e em novas populações cujas matrizes culturais dariam forma a outros padrões e costumes.No século XIX, em lugar dos fogos-de-chão (com as panelas apoiadas em pedras em formato triangular ou dependuradas por um tripé de ferro ou de pau verde por cima do fogo) e dos fogões improvisados em meio a um cupinzeiro (origem do fogão caipira), acozinha paulista – que até então não se diferenciava do lugar de receber, dormir e viver no interior da casa – começava a viver uma profunda transformação, vendo-se pouco a pouco se transformar num local de serviços onde às mulheres negras (nas casas abastadas) cabia todo um universo de tarefas, da preparação dos alimentos a amamentação dos bebês.
No âmbito alimentar, a sedimentação de uma sociedade escravista – constituída por um número progressivo de pessoas negras e pardas – passava a adotar uma variedade maior de verduras, legumes, frutas, condimentos (pimentas, tomilho, páprica, aromáticos e especiarias), além de experimentar outras formas de preparo do alimento (em especial, da galinha, do carneiro, do cuscuz de tradição africana…), ou ainda incorporar o consumo do açúcar, origem de uma elaborada doceria de matriz portuguesa (aletrias, babas-de-moça,bavaroises de laranja, arroz doce, beijos de claras, doces de abóbora, goiabadas, merengues..) (ABRAÃO, 2008). A proximidade da natureza, que marcara tão profundamente a vida nos sertões paulistas, assumia, enfim, outras características, experiências e tradições, sobrepondo-se novos e velhos hábitos, novas e velhas especializações e funções no bojo de uma sociedade agora permeada pela escravidão africana.
Já com a entrada do café, em meados do século XIX, um número progressivo de novas fazendas passaria a “marchar” em direção as áreas de mata nativa na busca por terras férteis, ao mesmo tempo em que este “complexo cafeicultor” fazia nascer um número progressivo de cidades (até então, de presença modesta no território paulista), espaços centrados nas tarefas de promover o escoamento dos grãos, garantir a força de trabalho, expandir o comércio e os serviços, ou ainda, produzir ou promover a importação de maquinarias e tecnologias agrícolas. Ao mesmo “complexo cafeicultor” caberia a organização e promoção de uma imigração em massa que entre as décadas de 1870 e 1945 trouxe para os sertões paulistas o montante de 2,2 milhões de imigrantes de cerca de 70 grupos étnicos diferentes, procedentes dos mais diversos continentes. A riqueza cultural resultante desta transformação implicaria, enfim, num novo leque de hábitos e costumes, valendo considerar que o mundo paulista dos anos 1930 já se achava constituído de 32,5% de italianos (304.977 pessoas); 19% de portugueses (176.591 pessoas); 17,2% de espanhóis (160.524 pessoas); 14% de japoneses (131.709 pessoas); 2,9% de alemães (26.998 pessoas); 2,8% de sírios (25.610 pessoas); 0,2% de norte-americanos (1632 pessoas).
Na esfera da gastronomia, a culinária caipira deixava-se agora enriquecer peloscostumes italianos (que reforçavam o gosto pelo queijo, pelo arroz, pela polenta de farinha de milho, pelos peixes, galinhas e frangos, pela vitela, coelho, lebre e carneiro, além depopularizar o uso das massas de farinha de trigo e introduzir/reforçar condimentos earomáticos como manjericão, sálvia, orégano…); portugueses (que reforçavam o consumo da carne, de frangos, peixes/sardinhas, bacalhau, camarões e frutos do mar, de leitões, cabritos e cordeiros refogados em vinho, de azeitonas, pepinos, pimentões, tomate, arroz, feijão, vinho, cominho, além das sobremesas a base de ovos, nozes, figos, melões, marmelos, amêndoas e romãs); espanhóis (que valorizavam o consumo de azeite de oliva, alho, açúcar, arroz, tomate, batata, pimenta do reino, caças, carneiro, aves, leitão, gado, linguiças, além de introduzir o açafrão, a alcachofra, o grão de bico e uma série de pratos típicos); japoneses (que introduziram novas formas de preparar peixes, crustáceos, mariscos, algas, arroz, legumes, chás, vegetais além de produzir o saquê e popularizar o consumo da soja); alemães (de presença mais modesta e procedência diversificada, que no entanto reforçaram o consumo de cerveja, da carne salgada e sobretudo do porco, introduzindo novas formas de preparar os presuntos, chouriços, salsichas, joelho e mortadela, além de ampliar o consumo de repolho, batatas, ovos, creme de leite, maçãs, canela, pimenta, introduindo ou valorizando a mistura de sal e açúcar); sírios libaneses (que também trariam novas formas de preparar os peixes, o arroz, o carneiro, a galinha, introduzindo ou popularizando o consumo de pinhão, iogurte, óleo ou pasta de gergelim); norte americanos(que ampliaram o consumo de frutas e legumes, com destaque para milho, maçã, abóbora, batatas doce, quiabos, feijões, cebolas, aém de enriquecer as maneiras de preparar as carnes e galinhas, os bolos e tortas, ou mesm introduzir tradições como do breakfast, contituído por ovos, bacon, pão, mingaus, geléias, sucos de frutas, chás)
No sítio Santa Rosa, propriedade rural aberta na primeira década do século XX nos “sertões de Jaboticabal”, os integrantes da família Baffi (procedente da cidade de Cocenza, no sul da Itália) deixaram para trás o lugar de colonos para se transformar em donos de terra, condição que lhes deu oportunidade e direito de imprimir no território paulista muitas das marcas culturais que trouxeram de outro continente. Estes testemunhos se encontram presentes nas edificações, nas benfeitorias, no pomar, nas tradições agrícolas e criatórias da pequena fazenda.
Entre os 9 filhos de Melchiore Baffi, o mais novo – de nome João – uniu-se por matrimônio a uma família de espanhóis, os Soares (procedentes da cidade de Salamanca), e ao tornar-se proprietário da Santa Rosa, na década de 1960, trouxe consigo uma diversificação das tradições: aos costumes italianos somaram-se um alto conhecimento na produção de café, uma antiga tradição na criação de gado e um outro universo de saberes e fazeres.
Na atualidade, a terceira geração da família Soares Baffi dá continuidade a muitas destas tradições. No campo gastronômico, antigas receitas da família Soares se mesclam às heranças do sul da Itália para fazer nascer uma linhagem de queijos, coalhadas, geléias de frutas, pães, massas, doces, licores… de sabor único. Colhidos no centenário pomar ou extraídos de rebanhos em permanente aprimoramento, a trajetória gastronômica de nossa família carrega uma significação histórica.